O Prêmio Camões é um dos mais prestigiados em língua portuguesa e anualmente concede 100 mil euros a expoentes literários lusófonos pelo conjunto de sua obra. Já foram premiados: Raquel de Queiroz, Saramago, João Ubaldo Ribeiro, Mia Couto, Dalton Trevisan, entre outros gigantes. É praticamente o Nobel de Literatura da língua portuguesa.
Esta é uma premiação conjunta entre Portugal e Brasil e, antes de tudo, é uma política de Estado que desde 1989 promove a lusofonia.
Neste ano, o ganhador do Camões foi Chico Buarque, um artista brasileiro que dispensa apresentações: cantor, compositor, dramaturgo, poeta e romancista. Durante décadas de carreira, enfrentou a ditadura e compôs um dos mais memoráveis repertórios da MPB. Goste você ou não, Chico Buarque é um dos grandes artistas brasileiros e receber o Prêmio Camões é uma bela homenagem ao seu brilhantismo, sua versatilidade e sua biografia.
No entanto, há uma pedra no caminho, no caminho há uma pedra: Jair Bolsonaro.
Por ser um prêmio conjunto entre Brasil e Portugal, o diploma de premiação precisa ser assinado pelos representantes dos dois países. Só que Chico Buarque é um ácido crítico deste mesmo presidente que tem de assinar o documento que premia seu crítico.
Já temos tido claras evidências de que Bolsonaro tem uma mentalidade patrimonialista e que não sabe distinguir entre governo e Estado, nem entre sua família e governo; a insistência no nome de seu filho para o cargo de embaixador é uma delas. Nepotismo? Chama de corrupto, porra!
Bolsonaro pensa no governo e, por extensão, no próprio Estado brasileiro, como parte de sua família, e nesta família quem manda é ele.
Um governante que soubesse fazer esta distinção, mesmo sob críticas de artistas, intelectuais e da imprensa, teria a nobreza e o senso cívico de assinar o diploma premiando mesmo quem o critica, mesmo que a mão tremesse, mesmo a contragosto, mas isto exigiria integridade e respeito às normas republicanas, algo que o Bolsonaro jamais demonstrou. “O Estado sou eu” é uma frase atribuída ao monarca absolutista Luís XIV. Certamente este rei francês também não assinaria um diploma premiando seus desafetos.
“Até 31 de dezembro de 2026 eu assino” foi a resposta de Bolsonaro, arrogantemente já supondo que pode vir a se reeleger.
O caso Chico Buarque não revela apenas o patrimonialismo bolsonarista, mas também apresenta mais um indício das suas constantes investidas contra os artistas e a produção cultural brasileira, principalmente quando possui um viés progressista. Assim como “nos áureos tempos do regime militar”, que Bolsonaro tanto admira e tenta emular, a Arte deve ser um espaço de defesa dos valores tradicionais, sabe-se lá quais sejam tais valores. É o falso moralismo em sua mais pura expressão. Para a cabeça retrógrada do presidente, um artista que ouse retratar um mundo diverso, com suas contradições, é imoral, mas até mais do que isto, é um risco à estabilidade social. E, claramente, mais uma vez sob a ótica patrimonialista do Bolsonaro, de “O Estado sou eu”, ele não pode permitir isto.
Então, partindo de um exemplo bastante inusitado, o Prêmio Camões, temos novamente a demonstração da pequenez moral e intelectual do atual governante. Comprando picuinhas desnecessárias, criando crises absurdas e mais uma vez expondo para os brasileiros e para o mundo o tremendo erro histórico que cometemos como nação. Ignoramos estas forças que foram fermentadas nas profundezas da sociedade brasileira e agora somos obrigados a lidar com as consequências disto.
Mas algo me reconforta: a obra da Chico resistirá e sobreviverá, como já resistiu e sobreviveu, o atraso. E a Arte, enfim, prevalecerá.
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